François de La Rochefoucauld afirmou com propriedade que “todos temos força suficiente para aguentar os infortúnios dos outros.” Mas, apenas quando provarmos de algum modo o infortúnio, aprenderemos a valorizar a felicidade simples de cada dia? Apenas quando sentirmos o beijo da morte aprenderemos a valorizar a vida?
Assim como em português, a
palavra inglesa Kiss significa beijo.
Eu poderia ter boas lembranças desta palavra de origem anglo-saxônica, afinal,
em minha infância ouvia-se sempre o Rei do Rock
and Roll, Elvis Presley cantar “kiss me quick”. Poderia também pensar na
marca de bala Kiss, de delicioso
sabor refrescante, mas, como não aprecio o hard rock, desgostei-me desta palavra quando ela tornou-se o nome
da banda americana Kiss formada em Nova York em 1973,
conhecida mundialmente por suas maquiagens e por seus shows que incluem coisas
exóticas como guitarras esfumaçantes, fogo, sangue, serpente mecânica e pirotecnias.
Tenho cá meus motivos para não
gostar do nome e acrescento agora mais um motivo para não ter boas lembranças
de Kiss: a tragédia da boate na
cidade gaúcha de Santa Maria com um saldo funesto de 237 mortos e centenas de
pessoas traumatizadas pelo resto da vida.
Dizem que a iminência e
proximidade da morte fazem que seus sobreviventes tomem atitudes diferentes daí
em diante, alterando sua escala de valores, referentes a pessoas e coisas. Para
muitos, parece ser necessário ser vitimados por algum mal para que aprendam a
valorizar a saúde e a vida.
Nosso país parece estar a reboque
dos acontecimentos para tomar atitudes. Quase sempre não há ação, mas, re-ação
aos fatos e tragédias. Por algum tempo as autoridades ficarão alerta sobre as
normas de segurança de locais públicos, mas, até quando? Parece que é
necessário haver tragédia para haver cumprimento da lei. É necessário que morra
alguém importante para que uma estrada seja corretamente sinalizada? É
necessário ver o cólera, a dengue ou a gripe H1N1 dizimarem centenas de pessoas para que nos tornemos mais
precavidos, mais conscientes de nossa responsabilidade coletiva?
Quando houve aquela tragédia em
uma escola do Rio de Janeiro, o assunto foi pauta para se vender notícia por
mais de uma semana. Autoridades e especialistas vieram a público falar das
providências que deveriam ser tomadas... E foram? As casas que deveriam ser
construídas para que as pessoas fossem retiradas das áreas de risco em Nova Friburgo foram construídas? Que nada!
Certamente que alguns discordarão
veementemente de mim no todo ou em parte. Poderão até lembrar-me do famoso
provérbio popular: antes tarde do que
nunca... Eu posso afirmar que o tarde
para aqueles mortos e suas famílias é nunca!
A grande ironia é que a razão social da boate Kiss é: Santo Entretenimento Ltda. Este foi um maldito entretenimento escolhido por aquele grupo de pessoas
naquela noite. Marcará para sempre a história da cidade de Santa Maria e de
todas as famílias, amigos e colegas das vítimas. Mas há perguntas que precisam
de respostas:
Ficamos chocados com a morte de
237 pessoas em uma tragédia? Todavia morrem nas estradas brasileiras, em média,
100 pessoas por dia! Estradas e pontes mal cuidadas, cheias de buracos, curvas
escorregadias, asfalto de péssima qualidade, motoristas irresponsáveis que
confiam na impunidade, motoristas de uma enorme frota de caminhões que vivem
diuturnamente sobre o volante à base de rebites,
trazendo atrás de si cargas acima do peso permitido, num círculo vicioso que
mata e aleija vidas e sonhos.
E se falarmos das pessoas
assassinadas, vitimadas pela violência familiar, pelo tráfico de drogas? E os
que morrem por falta de atendimento médico de urgência em nossos hospitais? E
os idosos e crianças maltratados por babás e cuidadores sem escrúpulos? E as
pessoas mutiladas pelo exercício ilegal e irresponsável das clínicas de
estética e abortos clandestinos?
Quando começamos a enumerar
nossas tragédias de cada dia percebemos que pouco ou quase nada se tem feito
para minimizar a miséria humana ao nosso redor.
C. S. Lewis nos lembra do quão importante
é aprender lições das tragédias porque "fora
de todos os eventos humanos, é só a tragédia que traz as pessoas para fora dos
seus próprios desejos mesquinhos e na consciência de outros seres humanos".
“Bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das
misericórdias, Deus de toda a consolação, que nos conforta em todas as nossas
tribulações, para que, pela consolação com que nós mesmos somos consolados por
Deus, possamos consolar os que estão em qualquer angústia!” 2 Coríntios
1:3-4
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